Guerra Junqueiro - Percursos e Afinidades
Guerra Junqueiro - Percursos e Afinidades
Raro a hermenêutica e a exegese da obra de um autor, para mais de uma singular e enigmática complexidade, atingem o alvo, ou captam a presa em abordagens imediatas, sendo necessário proceder por cautelosos passos, rodeando e envolvendo, tal como o caçador, até aprisionar o que se propõe.
Um novo percurso se abre agora, nesta colectânea de ensaios, que preconiza uma tese. Guerra Junqueiro: Percursos e Afinidades, de Henrique Manuel, apresenta um conjunto de importantes caminhos de viagem, sendo também esses percursos e essas afinidades, sinais de vida e de saber, aptos a um trânsito para o centro da espiritualidade junqueirina.
Pinharanda Gomes.
Henrique Manuel S. Pereira é licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa (Porto), onde fez dois anos de Mestrado em Teologia Sistemática. Doutorando em Literatura Portuguesa na Universidade do Porto, é professor da Escola das Artes (U.C.P), jornalista e investigador. Organizou e participou em Colóquios e Congressos. Colaborou em obras colectivas, publicou artigos em revistas de âmbito científico-cultural. É autor de: Viajar com... Guerra Junqueiro (2003); Mas há Sinais... (2002, 3\" Ed., aumentada 2004); Ausência que nos une (1999); Rita de Jesus (1999); As Barbas de Junqueiro (1999); Os Paraísos são Interiores (1997); De Pé como as Árvores (1995); Do Microfone ao Papel (1993); Opus-Dei: 1926-1927 (1992); Ele Sabe que Somos Assim (1992); Sinfonia de um Homem Vivo! (1990).
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UMA REVOLUÇÃO NOS
ESTUDOS JUNQUEIRIANOS
Guerra
Junqueiro terá confidenciado a Luís de Oliveira Guimarães que recebera
inspiração divina para desbravar os socalcos da Quinta da Batoca: Disse ele:
“Uma manhã, Júpiter apareceu-me em Barca de Alva e
disse-me, pondo a mão familiarmente no meu ombro: - “Queres fazer um poema
homérico? Vês esta terra selvagem? Rasga-a, ergue-a de socalcos, planta-a de
vinha. Dar-te-ei o sol para casar com ela!” Ingénuo e deslumbrado, lancei-me ao
trabalho. Um dia, anos mais tarde, Júpiter voltou: - “Belas cepas, Abílio!” –
“Cem mil, senhor Júpiter…” – “Cem mil versos de ouro. Fizeste o teu melhor
livro”. (p. 34)
Do mesmo modo,
lendo o livro de Henrique Manuel Pereira, Guerra Junqueiro. Percursos e
Afinidades, ficamos com a sensação que Deus, subtil, como desde o século XIX
é o seu modo de manifestar-se, terá aparecido uma manhã ao autor e soprado o
Verbo a seus ouvidos:
“ - Queres fazer um trabalho homérico, como o de
Hércules? Vês o labirinto em que se encontra a obra de Guerra Junqueiro?
Rasga-a, estabelece-lhe os níveis de análise, desembaraça o novelo dos temas,
distinguindo uns de outros, realça momentos cronológicos. Dar-te-ei inspiração
para casar com ela” Ingénuo e deslumbrado, como Junqueiro há 100 anos, Henrique
Manuel lançou-se ao trabalho. Um dia, anos mais tarde, Deus voltou, confessando:
- “Belas páginas, Henrique Manuel!”, “267, Senhor”. “267 páginas de ouro.
Fizeste o teu melhor livro!”
Com efeito,
Deus, como sempre, tinha razão: não é todos os dias que se lança um livro que
temos a certeza será lido dentro de cem anos. É, portanto, para mim um
privilégio poder apresentá-lo e disso estou muito grato a Henrique Manuel, de
que só conhecia a voz, mas também ao prof. José Eduardo Franco, que me alertou
para o livro, e ao editor da Roma Editora. Muito obrigado.
De facto,
Guerra Junqueiro. Percursos e Afinidades, como livro, possui um duplo
estatuto: constitui-se como um momento de chegada e simultaneamente como momento
de partida, é uma porta que se fecha para que outra porta se abra
É um momento de
chegada porque, na sua multiplicidade de textos de diversa motivação e
proveniência, escritos entre 1998 e 2005, evidencia-se como testemunho
definitivo da pulsão junqueiriana de Henrique Manuel que, abordando diversas
facetas da obra e da vida de Guerra Junqueiro, surge hoje, no panorama da
crítica e da historiografia literárias portuguesas, como o seu mais eminente
especialista. Um especialista da “letra” de Guerra Junqueiro, mas sobretudo um
especialista do espírito de Junqueiro, reconvertendo em novos postulados antigas
teses sobre a heterodoxia do pensamento deste autor, abrindo assim uma nova
porta ou um novo horizonte hermenêutico para a compreensão, em novas bases, da
totalidade da problemática social e literária junqueiriana. Guerra Junqueiro.
Percursos e Afinidades é, assim, um livro que traz consigo o que é
supremamente difícil trazer: o novo. Repete-se: - traz o novo, não a novidade. A
novidade é a aparência nova do antigo, é o “já sabido” vestido de outras
roupagens, outros métodos, outros conceitos, outra ideologia; o novo é violento,
rompe com consensos, impõe-se pela força da argumentação, dá um outro e
diferente sentido aos textos antigos e obriga os livros já firmados, as
histórias de literatura, a reverem os seus capítulos. É esperarmos três, cinco
anos e, na próxima reedição da História da Literatura Portuguesa de Óscar
Lopes e António José Saraiva, lá encontraremos um parágrafo correctivo do que
antes estivera escrito, apresentando a nova interpretação de Henrique Manuel.
Assim, como
ponto de chegada, é este o estatuto deste livro – ler como nunca fora lido a
obra de Guerra Junqueiro. Onde outros viram materializações republicanas nos
versos de Guerra Junqueiro, Henrique Manuel viu o espírito subterrâneo que os
atravessava na busca angustiada de um Absoluto, que ora se chamou Pátria, ora se
chamou República, mas Absoluto é que se devia chamar.
Mas, como ponto
de chegada, Guerra Junqueiro. Percursos e Afinidades é também um momento
de balanço e de recusa. Balanço da multiplicidade de interpretações e
perspectivas por que Junqueiro fora teorizado até à década de 90 do passado
século e selecção destas interpretações segundo uma hermenêutica
espiritualizante própria de Henrique Manuel que, diferente da de Pe. Moreira das
Neves, não repulsa a faceta panfletária de Guerra Junqueiro, antes a integra
numa nova visão, segundo a qual o panfletarismo patriota deste autor é ainda - e
sobretudo - busca poético-política de um Absoluto. Para Henrique Manuel não
existem, portanto, dois Guerra Junqueiro ou duas fases na sua obra, mas uma
apenas – a do poeta do Absoluto, que vai temporalmente alterando a face deste
consoante momentos conjunturais, primeiro, o Absoluto realiza-se na regeneração
e purificação de Portugal; segundo, na instauração da República; terceiro, o
Absoluto apresenta-se com a sua verdadeira face, a do Ser filosófico e a do Deus
teológico, minorizando e redimensionando as suas duas anteriores figurações
históricas.
Momento de
chegada, também, porque Guerra Junqueiro. Percursos e Afinidades e a
actividade junqueiriana de Henrique Manuel põem ponto final no amadorismo
hermenêutico que até agora cobria a obra de Junqueiro, estabelecendo uma
bio-bibliografia informatizada e segura, inclusive a bibliografia activa e
passiva brasileira de Junqueiro, fazendo igualmente o levantamento da livraria
do poeta e, por via desta, estabelecendo a cartografia das “afinidades” com
Teixeira de Pascoais e Raul Brandão. Neste sentido, tem razão o professor José
Eduardo Franco quando declarou, em Freixo de Espada-à-Cinta, que Henrique Manuel
operou um trabalho de “arqueologia cultural” sobre a obra de Guerra Junqueiro,
separando a lenda e o rumor, o entusiasmo militante e o empenhamento cívico
conjunturais de Junqueiro do que na obra deste é estruturalmente delimitado
pelos veios nervosos permanentes – o seu lirismo e o seu espiritualismo.
Limpeza
ideológica, tornando a obra de Guerra Junqueiro numa via clara, embora não
isenta de enigmas, eis o precioso trabalho deste livro. Neste processo de
purificação, ressaltou um Guerra Junqueiro de cara lavada: afinal, o que a
história da literatura hipostasiava – o republicanismo anti-eclesiástico e a
atitude cívica jacobina – é agora integrado na visão histórica de um Portugal
decadente, arrastando uma monarquia decadente à beira do fim de um século
decadente. Guerra Junqueiro limitou-se a ser o que Portugal era, exprimindo em
versos o Portugal combatido pela Geração de 70. Henrique Manuel dá-nos outra
figuração de Guerra Junqueiro: a blasfémia de A Velhice do Padre Eterno
não se constituiria só – e apenas – como panfleto anti-eclesiástico, mas,
sobretudo – e sobretudo -, como luz mensageira que, nascida da podridão da
decadência, apontaria o caminho para a ressurreição da própria Igreja,
regressando à sua infância de militância evangélica e de rectidão moral. Do
mesmo modo, A Morte de D. João, os versos de “O Caçador Simão” e de “O
Melro” não se estatuiriam como punhais afiados lançados contra a Igreja e a
Monarquia, mas sobretudo – e sobretudo – como momentos ou apelos de reconversão
espiritual de Portugal por que, através da República – figura mítica do
imaginário de Guerra Junqueiro –, o país renasceria purificado, ideário
semelhante ao da “Renascença Portuguesa”, de Teixeira de Pascoais. Perspectivada
deste modo, a instauração da República seria menos um corte radical com a
tradição pátria e mais uma integração do velho Portugal no novo Portugal a
construir, carregado de pulsões moças e viçosas, tão fortes quanto aquelas que
estiveram na base da fundação da nacionalidade ou na base da restauração de
1640.
Assim, como se
constata, Henrique Manuel Pereira oferece-nos em Guerra Junqueiro. Percursos
e Afinidades a figuração de um Guerra Junqueiro outro, estranho às histórias
da literatura, comandado menos por uma materialismo mecanicista e positivista e
mais por um espiritualismo ideal, um Junqueiro menos futurista e mais
tradicionalista, um Junqueiro que via no passado dos simples do seu povo o
padrão de realização harmoniosa do futuro.
Momento de
chegada, mas também momento de partida; porta fechada, mas também porta que se
abre – dissemos nós. Com efeito, esta reconversão, ou mesmo revolução, operada
na figura e na obra de Guerra Junqueiro, expressão da investigação de Henrique
Manuel nos últimos oito anos, cobram sérias responsabilidades ao autor deste
livro. É este o ponto de partida, não arbitrário ou ruptural, mas obedecendo
serenamente à direcção para que o livro aponta, isto é, a necessidade da
unificação da cerca de uma dezena de textos em que se divide o livro num todo
coerente, harmonioso e inovador. Como o professor José Eduardo Franco referiu na
apresentação de Freixo de Espada-à-Cinta, a Henrique Manuel cabe agora a
responsabilidade da construção de uma nova e historicamente determinante
biografia de Guerra Junqueiro, por um lado superando os estudos importantes mas
incipientes de Lopes de Oliveira e de Manuela de Azevedo, e, por outro,
consolidando e superando os estudos dispersos de Guerra Junqueiro. Percursos
e Afinidades. Trata-se de um imperativo categórico cultural exigir de
Henrique Manuel que deite mãos à obra e nos dê, dentro de cinco anos, um livro
com o seguinte título: “Guerra Junqueiro: Vida e Obra. Nova Interpretação”.
Miguel Real
GUERRA JUNQUEIRO, POLÉMICO ONTEM E HOJE*
“Para isso combina os vários elementos
Que compõem esta droga: o nome de Maria,
Anjos e querubins, infernos e tormentos,
Bastante estupidez e imensa hipocrisia.”
(G. Junqueiro, A Velhice do Padre Eterno)
No seu périplo pela figura de Guerra Junqueiro, especialmente pelos locais
que o seduziram, pela epistolário daqueles com que travou o diálogo
da escrita, pela poesia com que arrasou os alicerces da Igreja Católica
ou que o redimiu desses excessos difamatórios, Henrique Manuel S. Pereira,
oferece-nos agora Guerra Junqueiro ? Percursos e Afinidades (Lisboa, Roma Editora,
2005).
Esta obra é formada por um conjunto de textos escritos entre 1996 e 2005.
Abordando a topografia literária do autor de Horas de Combate, lembra
a questão do semitismo, as relações do autor de A Velhice
do Padre Eterno com o Brasil, e a temática espírita das Rimas
do Além-Túmulo.
Neste acervo de textos, Henrique Manuel Pereira faz-nos um curioso «Mapa»
da estranha amizade com Teixeira de Pascoaes e anotações eloquentes
a propósito dos Contos para a Infância e da Tragédia Infantil
(publicados em 1877) (p.141).
Finalmente, surge ainda uma referência detalhada ao Fundo Bibliográfico,
designado por Junqueiriana, ao inventariar o espólio que divide do seguinte
modo: «Obras de Junqueiro» (100 obras entre primeiras e mais edições),
«Restantes Obras sobre o Poeta» (293 obras) e «Índice
Onomástico».
Olhar dos vários ângulos possíveis e no confronto com os
inúmeros pontos de vista, tanto contemporâneos, como posteriores
à morte do Poeta, célebre sobretudo pela sua veia sarcástica
em relação a Deus e à Igreja Católica, não
pôde deixar de ser uma tarefa difícil e controversa.
Mas, como Henrique Manuel Pereira escreve nesta sua publicação,
«muitos dos trabalhos sobre o poeta são deformação
do homem, outros fotografia desfocada e sem profundidade de campo que nos dê
o seu contexto mais próximo, real e cru, sem eufemismos ou enfeudamentos»
(p.47). Um exemplo é precisamente «a questão do semitismo
de Guerra Junqueiro, (…) objecto de acesas discussões e irónicas
caricaturas» (p.48).
Entre o radical António Sardinha para quem «as taras de que enferma
a mentalidade israelita, pululam à farta na obra de Guerra Junqueiro»
(p.50) e o abade de Baçal que afirma serem «os descendentes de
António Madeira e Ana Afonso, ambos de Freixo, (e terem) sangue judaico
do lado desta» (p.54), outra pergunta se coloca ao autor de Guerra Junqueiro
? Percursos e Afinidades: seria ele «Cigano»? E Henrique Manuel
Pereira argumenta com uma passagem de Francisco Fernandes Lopes, datada do ano
do Primeiro Centenário do Nascimento do Poeta: «O motivo por que
Guerra Junqueiro não era ‘judeu’: – pela simples razão
de que era “cigano”» (pp.54-55).
Numa tentativa de ajuizar sobre o imbróglio, o autor recorre ainda ao
testemunho do «capitão Barros Bastos, homem que empreendeu o resgate
dos judeus em Portugal» e que «afirmava sem reticências a
ascendência semita de Junqueiro» (p.57). Segundo Henrique Manuel
Pereira, o abade de Baçal, o conceituado historiador de Memórias
Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, deixou
a questão em aberto provavelmente por duas equiparáveis razões:
«uma questão de rigor ou mais por prudência» (p.58).
Em Guerra Junqueiro ? Percursos e Afinidades, é curiosa a pesquisa às
sátiras feitas a Junqueiro, em particular, à obra A Velhice do
Padre Eterno, publicada em 1885. Henrique Manuel Pereira começa por relacioná-las
com as paródias feitas por autores que nos são hoje pouco ou nada
familiares. A maioria dos casos são folhetos de 10 a 15 páginas.
De facto, A Velhice foi a «obra que, mais do que nenhuma outra, contribuiu
para fortalecer entre nós a corrente anti-clerical, provocando grande
impacto mesmo antes de ser publicada» (p.207). E Junqueiro, bem lúcido
da gravidade do conteúdo dos seus versos, não tendo dúvidas
sobre a contestação que se lhe seguiria, escreveu numa carta ao
amigo Luís de Magalhães: «(…) a Velhice só
pode ser posta à venda no dia 20. A razão é simples. No
dia 19 vou a Braga e daí para o Porto. Ora, se o livro aparecesse no
dia 18, arriscava-me a ir a Braga para a Eternidade com a cabeça partida
por algum hissope» (p.207).
Neste ambiente inconformado com as diatribes rancorosas e inclementes com Deus,
com Cristo e a Sua Igreja, a Velhice do Padre Eterno, é parodiada pela
Folha Nova com a paródia A Velhice da Madre Eterna subscrita por Marraschino
& C.ª. A identificação deste «controverso pseudónimo»
será feita logo a seguir com mais alguns documentos, terminando Henrique
Manuel Pereira com a passagem em que Marraschino & C.ª acaba por fazer
uma respeitosa vénia ao Poeta dos Simples: «Marraschino & C.ª,
sociedade trocista de gargalhada permanente depõe as pennas galhofeiras
aos pés de Junqueiro (…) – o poeta colossal cuja lyra é
um Hymalaia de tropos luminosíssimos e aos pés de Bordallo Pinheiro
– o implacável demolidor d’esta sociedade apodrecida e balofa.
Ambos elles são uma força e foi à sombra d’esta honrada
e gloriosa força que marraschino teve a petulância de flanar um
pouco pelos domínios do escândalo alegre e da cebola» (p.213).
Na verdade, a ambiguidade do documento acima citado por Henrique Manuel Pereira,
mostra bem como o prestígio literário de Guerra Junqueiro se acabou
por sobrepor (e continua a sobrepor) à fé e à discordância
de muitos a quem ele feriu os mais fundos sentimentos religiosos.
É sempre difícil não ver alguma desculpabilização
para aqueles que, idolatrados pela política ou pela cultura do seu tempo,
investem desmedidamente sobre temáticas que, sabem à partida,
quanta popularidade lhes vai granjear. E a temática anti-religiosa é
mesmo uma das mais promissoras formas de alcançar louvores e glória
entre as hostes dos inimigos da Fé.
Teresa Ferrer Passos